Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino,
mudar de vida como mudamos de roupa
não para salvar a vida, como comemos e dormimos,
mas por aquele respeito alheio por nós mesmos,
a que propriamente chamamos asseio.
Há muitos em que o desasseio não é uma disposição
da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência.
E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é
uma forma de a quererem, ou uma natural conformação
com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência
de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.
Há porcos que repugnam a sua própria porcaria,
mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo
de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo.
Há porcos de destino, como eu, que se não afastam
da banalidade quotidiana por essa mesma
atracção da própria impotência.
São aves fascinadas pela ausência de serpente;
moscas que pairam nos troncos sem ver nada,
até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.
Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente,
no meu tronco de árvore do usual.
Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando;
o meu tempo que segue, pois eu não sigo.
Fernando Pessoa In Livro do Desassossego
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